quarta-feira, 30 de março de 2016

O Lado Oculto da Cidade de Breves

Eu morri e neguei-me a libertação ou o eterno castigo. Preferi vagar, eternamente, entre o mundo e o submundo, vendo os homens e mulheres viverem e os fantasmas se torturarem. Não existo, existindo. Posso estar ao seu lado, sem ao menos ser notado. A morte ainda caminha atrás de mim, seguindo meus passos. Ainda acredita que me entregarei a ela para que me leve até a luz. Mas não, não é isso que desejo. Depois que meu corpo apodreceu em um tumulo, minha visão se abriu para muitos mistérios que se escondem sob o véu da morte. E são esses mistérios escondidos que lhes contarei, um por um. Tais mistérios vêm como visões. Relâmpagos de lembranças de almas torturadas por demônios de suas mortes. Vejo uma fila de casas, de madeira, quase idênticas. Sobre elas se debruça uma enorme castanheira com castanhas cor de sangue. Elas caem, servindo de alimento para corpos mortos que saem da terra. Corpos gementes com olhos de leite e gangrenas purulentas. Que historia horrível se passou aqui.

1 – A Castanheira

Quem sabe o que se esconde nas profundezas de onde pisas? Há mais mistérios escondidos nos grãos de areia desta terra, do que na obscuridade insalubre da mente de um psicopata homicida.

Hoje olhamos para essa cidade, com seus pavimentos e asfaltos. Com as pessoas indo e vindo sem destino. Casas em constantes mudanças. Cenário em eterna metamorfose. E quem ousa, na correria do dia-a-dia, parar por um momento e observar estas mudanças singelas? Que segredos guardam os blocos do pavimento da rua em você passa todo dia para ir trabalhar?

Já parou para olhar para uma casa e imaginar as centenas de historias que ocorreram dentro daquelas paredes? Que tipo de loucura seus moradores ousam deixar encarcerado dentro do conforto do lar? Ah, queridos amigos, nem tentem forçar a mente. É na invasão da escuridão da noite que os demônios acorrentados na carne humana ousam se libertar.

O mundo de hoje vai esvaindo em fumaça, enquanto vejo a arquitetura de uma cidade antiga se formando na minha frente. Os homens vivos vão sumindo, deixando somente lembranças de homens que já viveram. Alguns fantasmas, como eu, se debruçam a chorar quando olham o que, um dia, foram seus corpos vivos. Uma breves antiga se forma, tão real quanto a que eu conhecia em vida.

Surjo dentro de uma casa, levado por uma força oculta que ainda não entendo. Olho pela janela e vejo várias casas populares de madeira. No fim do horizonte há uma grande castanheira. Eu a conheço, como a conheço. Era a castanheira que ficava nos aposentos da Escola Rossilda Ferreira.

Tudo está diferente. Rua de terra batida, crianças livres, correndo na rua. Algumas vinham molhadas do igarapé do Santa Cruz. Eram tempos difíceis, mas com uma liberdade gostosa que, quando vivo, pouco degustávamos.

Uma das crianças entra na casa onde eu estava. Vejo ela correndo para a cozinha e meus olhos encontram um calendário na parede. Estava revivendo o ano de 1983, período do governo do Gervásio Bandeira. O sitio que existia aqui antes foi indenizado e criado casas populares. O que explica as casas semelhantes e enfileiradas da minha visão.

Vou até a cozinha. O garoto está tomando um café com pão e margarina. Mesmo não tendo corpo, fiquei com vontade de poder consumir aquele alimento. Saborear uma comida... Algo que só percebi ser prazeroso depois que morri. Tantas coisas simples e gostosas, mas acabamos deixando passar por acreditar que há coisas mais importantes. Mas a morte nos ensina que nada é importante.

- Espoca-rabo, vem aqui fora um instantinho. – gritou alguém na rua.

O garoto largou o café com pão e saiu correndo, de pés descalços. Atravessei a parede e fui ver a conversa dos garotos, mas antes que eu pudesse ouvir algo eles saíram correndo. Deixei o vento me levar em direção a eles.

Se encontraram com outros garotos, que estavam amontoados embaixo de uma árvore. Quando me aproximei vi que eles estavam segurando um cachorro. O garoto, que chamaram de espoca-rabo, se aproximou tirando algo do bolso. Era o que chamavam de bomba de 30. Amarrou no rabo do cachorro e acendeu com um fosforo. Soltaram o animal que saiu correndo desesperado. Em segundos a bombinha explodiu, fazendo voar sangue e pedaços do animal.

O grito do cachorro se juntou aos risos das crianças. Mas aquele garoto não estava rindo. Ele olhava para o cachorro em sofrimento com um olhar diferente dos demais. Me aproximei e, como se a força que desconheço soubesse de meus anseios, deixou o tempo lento. Era simples, quase imperceptível, mas aquele garoto sorria de uma forma sádica, cruel. Ele sentia um prazer incomum no que havia feito.

Eles evaporaram. Tudo evaporou. Me vi em um limbo escuro. Uma pequena luz surgiu, ao longe. Seria a luz que a Morte tanto anseia que eu siga? Tentei arriscar. Caminhei lentamente e uma porta foi surgindo. Fiquei receoso de abri-la, mas olhei em volta e vi que não havia outro caminho.

A porta rangeu, mas as pessoas que estavam dentro não ouviram. Eram dois adolescentes. Um eu reconheci, era o espoca-rabo. O outro eu desconhecia. Não foi essa passada de tempo, da infância a adolescência, que me chamou atenção, mas a cena que se estendia em minha frente.

Havia um tapete vermelho aos meus pés. Um tapete de sangue. Em alguns pontos havia pedaços de carne, tripas, dedos. Espoca-rabo estava debruçado sobre o corpo de um de seus amigos, esquartejando-o. Os mesmos olhos que brilhavam ao maltratar aquele cachorro, agora brilhavam ao matar um homem.

Tudo escureceu. Em minha frente apareceu espoca-rabo puxando o corpo do rapaz dentro de uma grande sacola. Ao longe eu vi a castanheira, iluminada pela lua.

Com uma pá o espoca-rabo começou a cavar aos pés daquela árvore. Me abaixei para ver o quão profundo ele cavava, e com uma maestria incomum.

Uma mão surgiu nas terras que ele mexia, não havia sido o primeiro que ele havia matado. Ele jogou o saco no buraco e pôs-se a encher de terra. E antes que o sol surgisse e as pessoas acordassem, ele já estava em sua rede em um sono profundo.

A escuridão tomou conta de meus olhos novamente. Fiquei horas sem ver nada, sentir nada, ouvir nada. Somente com os meus pensamentos sobre o que eu havia testemunhado. Um forte clarão surgiu em meus olhos e me vi na Breves que morri. Em minha frente lá estava ela, a castanheira. Grande, vigorosa, bela. A Morte estava sentada em sua sombra, me observando, afiando a sua foice. Carros e motos passavam ferozmente, atravessando-me sem nem imaginar minha presença. Ninguém parava para olhar para aquela árvore e se questionar o porquê ela superou o tempo com todo aquele vigor.

Mas eu sabia a resposta. Somente eu e a morte sabíamos que aquela árvore, nessas décadas que se passaram, usou corpo humano como adubo. Corpos esquartejados que irão permanecer incógnitos pelos séculos que se perpetuarão.

Fim

segunda-feira, 21 de março de 2016

Tragédia grega

“Ela repousou no banco assim como o sol repousa no horizonte. Quem é ela? Desconheço. Mas se uma voz sussurrasse em meu ouvido dizendo ser ela ascendente das antigas ninfas que encantavam os gregos, eu acreditaria sem pestanejar. Ela agarrou-se a feminilidade, sem deixar de emanar sua maturidade. Uma mulher que, sem nem ao menos falar, se sobressai a muitas. Me prendeu a atenção e furtou meu raciocínio. Ladra! Deixou o meu coração em cárcere privado. Ah, se ela soubesse que gostaria de pagar o resgate com a minha liberdade! Viver preso a ela, assim como as estrelas e o universo. Me contentaria que, pelo menos, ela tirasse aqueles olhos do livro e lhes voltassem para mim, abrindo o sorriso que me deixou abobado. Nossa, iria ser um atentado! Seria a próxima manchete dos jornais: Morto mais um homem apaixonado. Seria trágico, mas morreria feliz. Afinal, de uma ninfa não se pode esperar menos do que uma tragédia grega. A nossa tormenta é a diversão é dos deuses antigos.”

Renan Medeiros, o Coruja.
Confissões Testosterônicas.
Breves, 21 de março de 2016

Contratos quebrados.

Absorto, ele fixava sua visão no teto enquanto sentia os delicados dedos dela tateando seu tórax, deleitando-se com os resquícios de prazer ...